A vacinação contra a dengue pelo Sistema Único de Saúde (SUS) começou nessa sexta-feira (9/2). A latente epidemia da doença, com alta do número de novos casos e hospitalizações, motivou pais a formarem filas nos postos de saúde para que seus filhos recebessem a primeira dose do imunizante.
Já foram registrados mais de 408 mil casos prováveis de dengue e 62 mortes apenas neste ano, segundo dados do Ministério da Saúde divulgados nessa sexta. A expectativa pelas vacinas era grande, mas a quantidade limitada de doses disponibilizadas pela fabricante Takeda fez com que o ministério restringisse a imunização às crianças de 10 e 11 anos, faixa etária definida pouco antes do início da vacinação.
Em entrevista ao Metrópoles, o pediatra e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Renato Kfouri, lembra que as crianças e adolescentes constituem o segundo grupo populacional que mais é hospitalizado, atrás apenas dos idosos. Por isso, a vacinação é essencial.
“Outro aspecto muito importante é que a vacina se demonstrou mais segura e mais eficaz justamente nessa faixa etária”, afirma.
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Leia a íntegra da entrevista com o pediatra Renato Kfouri, vice-precisente da SBIm:
Metrópoles: Hoje, o Metrópoles entrevista o pediatra Renato Kfouri. Ele é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e fala sobre o início da vacinação contra a dengue na população infanto-juvenil.
A vacina da dengue começará a ser aplicada pelo SUS nas crianças e adolescentes de 10 a 14 anos. Qual é a importância de vacinar essa população?
Renato Kfouri: Quando recebemos uma quantidade de doses restrita, tivemos que elencar dentre os grupos. O ideal seria vacinarmos toda a população brasileira, mas dentro da faixa de indicação da bula da vacina – entre 4 e 60 anos de idade – nós tínhamos que escolher uma idade e alguns locais porque são só 6 milhões de doses. Neste primeiro ano, são 3 milhões de brasileiros a serem vacinados.
O critério de 10 a 14 anos se baseou em dois aspectos importantes. Um deles é que é a segunda idade que mais se hospitaliza por dengue entre todas as idades. Os adolescentes só perdem para os idosos – grupo em que a vacina não está licenciada.
Em segundo, outro aspecto muito importante, é onde os estudos foram feitos com o maior número de voluntários participantes. A vacina se demonstrou mais segura e mais eficaz justamente nessa idade.
Não é à toa que a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda as crianças e adolescentes como prioritários. Baseado nesses dois fatores, elegemos a idade e, em função do quantitativo de doses, os municípios que têm historicamente, nos últimos anos, mais casos da doença para iniciar o processo de vacinação.
Metrópoles: E por que os adolescentes, depois dos idosos, são os que mais internam?
Renato Kfouri: Não há uma explicação para isso. A dengue é uma doença que tem uma distribuição basicamente democrática em todas as idades. A doença atinge a todos, mas as suas formas graves se concentram mais entre os adolescentes e os idosos. Não são muito mais diferentes do que o resto da população, mas é um grupo que, sem dúvida, tem um impacto importante.
Metrópoles: Qual é a tecnologia usada na Qdenga, a vacina da Takeda aplicada pelo SUS?
Renato Kfouri: É uma vacina que nós chamamos de vírus vivos atenuados ou enfraquecidos. Semelhante ao que a gente utiliza, por exemplo, com a vacina da catapora, do sarampo, da rubéola, da febre amarela, da caxumba.
São vacinas que enfraquecem o vírus. Fazem umas modificações no vírus para eles se tornarem não contaminantes, não infectantes — não vai desenvolver doença em ninguém, mas são capazes de estimular a nossa resposta.
Ou seja, indivíduo vacinado fica com a proteção sem ganhar a doença. Essa é a ideia da vacina da dengue e das demais vacinas. Mas essa em específico funciona com o próprio vírus da dengue vivo, porém enfraquecido, para não causar doenças.
Metrópoles: Pelos estudos, ela se mostra segura e eficaz para essa faixa etária?
Renato Kfouri: Sem dúvida. A vacina mostrou eficácia no primeiro ano de 80% para prevenção da doença e de 90% para prevenir as formas graves e hospitalizações. E já há um acompanhamento dos indivíduos que foram vacinados lá atrás, há quatro anos e meio, mostrando que há uma persistência da proteção especialmente nos graves: de 90% no primeiro ano, a 84% depois de quatro anos e meio.
Ou seja, o indivíduo vacinado hoje fica protegido das formas graves de dengue por pelo menos cinco anos e ainda sem indicativos de necessidade de revacinação por pelo menos esses quatro anos e meio.
Metrópoles: Em termos de propagação do vírus – nós vivemos uma epidemia praticamente sem precedentes –, faz diferença vacinar as crianças agora?
Renato Kfouri: Não há dúvidas. A vacina é feita em duas doses com intervalo de três meses entre elas. Então quem está recebendo agora em fevereiro a primeira dose e, em maio a segunda dose, vai se proteger de junho para frente. Ou seja, época em que muitos dos casos já reduziram.
Historicamente, a gente concentra a maior parte dos casos de dengue no primeiro semestre. Então a vacina vai ter uma utilidade maior, individualmente, para aqueles que forem vacinados a partir do segundo semestre. Mas é óbvio que há uma proteção com uma primeira dose. E essas 3 milhões de pessoas que vão ser vacinadas em 2024 não vão impactar no número total de dengue, na carga da doença no país. A vacinação não vai fazer nenhuma diferença na epidemia este ano.
Metrópoles: Depois de vacinadas, as crianças podem apresentar alguma reação adversa que os pais devem ficar atentos? Como eles devem proceder nesses casos?
Renato Kfouri: Exatamente igual a qualquer vacina, Bethânia. Quem tomou a vacina de dengue pode ter febre, dor no corpo, uma dor local, pode aparecer um vermelhinho na pele, reações esperadas como qualquer vacina. Não é diferente das vacinas habituais que a gente tem.
O perfil de segurança da vacina é muito semelhante às demais vacinas do calendário, vacinas do sarampo, da rubéola, da catapora, que eventualmente podem dar reações que são leves e transitórias.
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Metrópoles: Depois de tomar a vacina, as crianças ainda precisam usar repelente e os pais devem tomar cuidado com relação ao mosquito?
Renato Kfouri: Devem. A vacina protege contra a dengue. Febre amarela, zika, chikungunya e outros vírus transmitidos pelos mosquitos continuam por aí.
Então, usar repelente, especialmente nesta época das chuvas ou em regiões onde você tem mais mosquitos, é fundamental. E para aquelas crianças pequenas, mosquiteiro, telas no quarto e todas aquelas recomendações que a gente faz, valem.
Já que nós não vamos impactar a dengue com as vacinas nesses primeiros anos, é continuar controlando o mosquito. Essa é a principal arma que a gente ainda dispõe. Nós, como população, e o poder público cuidando dos prédios abandonados, dos terrenos baldios, dos lixões, dos esgotos a céu aberto. Nós temos inúmeras oportunidades para o mosquito dentro das cidades e é função de todos, do poder público e dos municípios, cuidar cada um na sua parte.
Metrópoles: Doutor, falando de doença, nós ainda temos um grupo de crianças e adolescentes que não vão ser vacinadas. O senhor pode explicar quais são os sintomas da dengue que os pais devem ficar atentos, porque alguns são até bem semelhantes a outras doenças bem comuns?
Renato Kfouri: A dengue é uma doença febril, aguda, que cursa normalmente com a incapacidade. Ou seja, dor de cabeça, dor no corpo, atrás dos olhos, dores articulares que são limitadas, as pessoas ficam realmente derrubadas com esses sintomas.
Outras doenças dão esses sintomas, como você bem lembrou, mas a dengue não dá sintomas respiratórios. Não dá tosse, coriza ou secreção. Então, quem está com febre, dor no corpo, dor de cabeça, mal estar e não está com esses sintomas gripais deve sempre pensar em dengue, especialmente nessa época do ano, onde os casos vêm se acumulando.
O diagnóstico confirmatório precoce é fundamental porque sabendo que está com dengue, esse indivíduo vai ser orientado para os sinais de alarme. Então, se você está com dengue, confirmou e tem sangramento, uma dor abdominal muito intensa, tem vómitos muito fortes, uma confusão mental ou um desmaio, isso é um sinal de que a dengue está evoluindo para sua forma grave.
A dengue costuma melhorar após o quinto a sétimo dia e quem vai agravar volta a piorar a partir do quinto ao sétimo dia com esses sinais de alarme. É importantíssimo já começar a hidratação antes do diagnóstico, mas especialmente nesses indivíduos com sinais de alarme, hospitalização e hidratação para evitar os desfechos mais graves.
Metrópoles: O laboratório fabricante da vacina informou essa semana que vai priorizar a disponibilidade de doses para o SUS pela falta de capacidade para produzir doses para os laboratórios particulares também. Mesmo assim, o restante da população deve continuar tentando se vacinar de alguma forma pela rede particular?
Renato Kfouri: A rede particular iniciou primeiro a vacinação, desde o ano passado. Antes que o governo sinalizasse, aprovasse e incorporasse a vacinação do SUS, ela já vinha sendo comercializada nas clínicas privadas e é claro que, com a aquisição da totalidade de doses pelo governo, o laboratório não vai mais fornecer vacinas para o serviço privado para direcionar todas suas doses para o SUS e vai terminar só os esquemas começados.
Em breve, as vacinas não estarão mais disponíveis nas clínicas privadas, a não ser para quem já começou o esquema vacinal. Então, é fundamental que quem pode pagar e encontrar a vacina, faça, mas isso vai demorar um pouco.
É uma parcela muito pequena da população que tem capacidade de pagar um valor caro por duas doses. Isso não impacta na doença do país, protege somente individualmente aqueles que puderem ter acesso à vacina. Mas sim, entre 4 e 60 anos, quem puder pagar e encontrar uma vacina disponível nas clínicas privadas, pode e deve se vacinar.
Metrópoles: E pra finalizar, o diretor do OMS sugeriu que o Brasil seja um polo de produção de vacinas para termos mais disponibilidade e também para fornecer para outros países. O senhor acredita que isso seja possível? O que é necessário para isso acontecer?
Renato Kfouri: O Butantan é um instituto tradicional que já vem desenvolvendo uma vacina contra a dengue brasileira. Publicou recentemente seus primeiros estudos de fase três, com dois anos de acompanhamento, mostrando uma eficácia muito semelhante à vacina Qdenga do laboratório japonês Takeda.
Nós aguardamos ainda o término dos estudos da vacina do Butantan, que tem capacidade tecnológica de produção nacional, e já existe investimento de uma planta de fabricação aqui.
O laboratório Takeda começou também a conversar com o Instituto Bio-Manguinhos, com a Fiocruz no Rio de Janeiro, para ter acordos de transferência de tecnologia nessa parceria para aumentar a capacidade produtiva da vacina aqui no Brasil.
Então nós temos dois grandes institutos produtores de vacinas no Brasil, centenários de muita tradição e que têm todas as condições – o Butantan de desenvolver sua vacina em parceria com o Instituto Nacional de Saúde Americano, e Bio-Manguinhos, em parceria com o laboratório Takeda – para ter uma produção nacional.
Nós vamos precisar de muitas doses. Contar com mais de um produtor, com mais de um fabricante, é sempre fundamental. A boa notícia é que a vacina nacional do Butantan é em dose única, o que facilita ainda mais. Com o mesmo quantitativo de doses, a gente vacina o dobro de pessoas. Além, é claro, de ser uma vacina brasileira e o desenvolvimento do nosso parque tecnológico também é importante em termos de desenvolvimento de ciência e tecnologia no país.
Metrópoles: Perfeito, doutor. Obrigada. É sempre um prazer falar com o senhor, que sempre está disponível para esclarecer as nossas dúvidas sobre vacinas. Obrigada!
Renato Kfouri: Eu te agradeço. Por enquanto é isso: as vacinas estão aí, mas vamos cuidar do meio ambiente, dos mosquitos, que é essa nossa missão, principalmente neste momento.
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